Sua dança é sua, não do outro

"Percebo situações que me agridem, enquanto amante, praticante e estudiosa de danças e também, como mulher, que luta por respeito; ambas sendo usadas de qualquer jeito, para qualquer finalidade e normalmente sem valor". Neste contundente depoimento, feito especialmente para o Absoluta, assim afirma Gleice Lemos Frioli (Shakty Shala), professora e dançarina, dedicada há 25 anos ao estudo de danças. Ela faz um importante alerta quanto à crescente comercialização e banalização da dança. "Quando alguém vê que algo está sobressaindo e que tem mercado, mesmo aquele que nada sabe ou sabe mas não tem profundidade, aproveita para também vender seu peixe. Outra questão aqui é: até que ponto consumimos qualquer bobagem ou conteúdo, sem questionar e comparar?", questiona Gleice.
E faz um importante chamamento às dançarinas desiludidas: "Sua dança é sua, não do outro. Encontre a sua e saiba usá-la com sabedoria, para você e para o outro que vem até você. Se cada uma de nós começar essa pequena transformação em seu interior, iniciaremos uma grande mudança, para benefício de todos nós, bailarinas ou não, para a dança ou para uma melhor convivência social, pois, quando as pessoas expressam livremente sua essência e se sentem confortáveis para tal, elas estão mais felizes consigo, e por conseguinte com o outro".
É isso aí! Acompanhem de perto este recado.


Estes dias, abri meu perfil no Orkut, e lá pairava um depoimento do Ricardo, convidando-me a escrever um texto sobre dança, no qual eu teria a liberdade de escolher se eu queria tornar o tema pessoal ou "científico" e técnico.
O mais cômico de tudo isso foi o momento em que o convite foi feito à minha pessoa. Momento este em que pondero os prós e os contras de trabalhar com Dança, e o desgaste da luta cotidiana, para valorizar e viver dessa arte, que convidam ao abandono do campo de batalhas, um renunciar ao amor.
Hoje, ao olhar a dança, digo que é com muita tristeza que observo uma certa deturpação de seus reais e primordiais valores. Para dar sustentação ao meu argumentar, puxo pela gênese de tal, onde os movimentos corporais e emocionais se uniam numa expressão ontogenética, ou um neologismo corporal inventado, em prol de uma comemoração, devoção, adoração, ritualisticamente falando. Onde o que menos importava era a estética ou o luxo das vestes, mas sim se tudo aquilo compunha um quadro de entrega para tal acontecimento e vivência, fossem estes ligados ao amor ou às guerras primitivas como rituais preparatórios.
A dança enquanto arte levou muitos anos para sair da estagnação e ser vista como manifestação artística de valor. Quando digo dança, não estou me referindo somente ao balé clássico ou contemporâneo, mas à dança como um todo, em todas as suas manifestações multiculturais. E, assim como culturas diferentes da nossa, sofre com preconceitos e adulterações de suas reais características, englobando novas invenções que podem denegrí-las ainda mais.
Existem, para mim, pontos que são de extrema relevância nesse assunto: o se permitir a dança e o entender a dança. O se permitir a dança é o momento em que dançamos e, para alguns, o estudo da mesma; por prazer ou como profissão. Embora o ponto mais complexo e fundamental não é o dançar, mas sim o entender a Dança. Pois ela não é só uma junção coordenada de movimentos ou esquemas complexos, é a entrega do corpo e da psique a outro estado do ser, uma rendição, mas ainda sim, consciente de si, resgatando e recordando quem somos. E quem a entende se torna a pura expressão manifesta e, cria, cria e recria, sem precisar copiar ou imitar padrões e idéias alheias, pois tudo flui e se encaixa. Maieuticamente, descobrindo verdades que já possuíamos, embora as desconhecêssemos.

Quem entende o dançar, fica emocionado e se identifica com o pequeno Billy Elliot, quando diz: "No começo é difícil, mas depois que começo, eu esqueço tudo. E desapareço. Parece que desapareço. Eu sinto uma mudança no meu corpo todo, como se tivesse um fogo. E eu fico ali. Voando. Como um pássaro. Como a eletricidade. É. Eletricidade." (Stephen Daldry, filme Billy Elliot, 2000).

A dança tem em si o dom de transformar, reconectar, de curar e confortar desde quem a pratica como quem a assiste. Mas, em sua dualidade, pode ter efeitos contrários. Assim como a diferença entre o remédio e o veneno só esta na dosagem, a dança se consumida erroneamente nos faz mal... Quando um aluno ou nós "entregamos" nosso corpo na mão e na ideologia de um professor, estamos correndo o risco de sairmos dali, mudados, com dores de coluna e levando ideias infundadas.

Até que ponto? - Percebo aí situações que me agridem, enquanto amante, praticante e estudiosa de danças e também, como mulher, que luta por respeito; ambas sendo usadas de qualquer jeito, para qualquer finalidade e normalmente sem valor. Você já colocou a palavra dançarina no Google e fez uma pesquisa?... é de assustar!!! A dança tem se tornado algo extremamente comercial em todos os aspectos, seja para trabalhar o físico, a sedução ou conexão espiritual, pois quando alguém vê que algo está sobressaindo e que tem mercado, mesmo aquele que nada sabe ou sabe mas não tem profundidade, aproveita para também vender seu peixe. Outra questão aqui é: até que ponto consumimos qualquer bobagem ou conteúdo, sem questionar e comparar???
Deixo claro que isto não é uma crítica, afinal de contas sou a primeira a levantar a bandeira para dizer: "Ei, a dança é sua, use-a para si e como quiser...". Mas sim como um alerta, para que haja uma abertura de pensamentos, um resgate de sua essência, um romper com padrões. Pois a dança é em si muito mais do que isso. Para a dança, não importa se você é alto ou baixo, feio ou bonito, "turbinada" ou não, novo ou velho, não importa gênero ou opção sexual, não importa religião, só importa que você esteja preparado para ela, para vivenciá-la, sentí-la, e acima de tudo permitir que ela possa lhe trazer mudanças e novos horizontes. Para que, assim, você a entenda e aprenda a usá-la a seu favor.
A dança nunca deve ser o Leito de Procusto (*), onde tentamos nos encaixar em regras e ideais corporais, que nos mutilam ou nos levam à frustração tentando alcançá-los, até ocorrer o nosso desmembramento enquanto pessoa. Já vi mulheres que se realizavam dançando abandonando a dança porque, depois de muita dedicação e prática, não obtiveram um feedback positivo, sentindo-se julgadas e tolhidas alheiamente. O trabalho de resgatar a essência do dançar está no resgatar o amor próprio e a autoconfiança, além do respeito e aceitação do outro. Quando resgatarmos isso, resgataremos essas "dançarinas" desiludidas, resgataremos também o respeito no olhar do outro e celebraremos a diversidade.

Sua dança é sua, não do outro. Sua dança é a manifestação do seu ser; sendo assim, é única, como cada um de nós. Encontre a sua e saiba usá-la com sabedoria, para você e para o outro que vem até você. Se cada uma de nós começar essa pequena transformação em seu interior, iniciaremos uma grande mudança, para benefício de todos nós, bailarinos ou não, para a dança ou para uma melhor convivência social, pois, quando as pessoas expressam livremente sua essência e se sentem confortáveis para tal, elas estão mais felizes consigo, e por conseguinte com o outro.

(*) Para quem não conhece, na mitologia grega há um mito que se chama "O leito de Procusto" e conta a história de um bandido, Procusto, que vivia em uma floresta e possuía uma grande cama. Todos que passavam pela floresta eram presos por ele e colocados em sua cama. Sendo que, os que eram muito grandes, ele lhes cortava os pés, e se eram muito pequenos, Procusto os esticava, para que se encaixassem na cama dentro de seu padrão.


Gleice Lemos Frioli (Shakty Shala)
Dedica-se ao estudo de danças há 25 anos, e dança oriental há 14 anos, e é criadora do trabalho Dança do Sagrado Feminino. Estuda o sagrado feminino desde 1994 e aplica-o em suas aulas e danças. Seu trabalho é direcionado ao fusionamento de danças com dança oriental, explorando o universo dessa arte através dos arquétipos femininos para promover o encontro da totalidade do feminino com seu corpo em suas mais amplas expressões. Atua no Rio de Janeiro e São Paulo.
http://www.dancadosagradofeminino.com/
shaktyshala@gmail.com

RIO DE JANEIRO/RJ


Fotos: Arquivo pessoal

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